O apagão e o lema de Chacrinha

Artigo publicado em 22/08/2023 por Valor.

O setor elétrico levou mais um safanão, como tem acontecido numa triste média de um a cada dois anos e meio. A ocorrência do dia 15 resultou num corte de carga (apagão ou blecaute) de 19 GW. Afetou 25 estados e o Distrito Federal. Foi o segundo maior apagão desde 1999. Contudo, ao contrário do que se falou por aí, alguns milissegundos depois do início da perturbação os computadores do Operador Nacional do Sistema (ONS) já indicavam onde foi a falha – no terminal de Quixadá da linha de transmissão (LT) até Fortaleza. O que os computadores não confirmaram foi a raiz do apagão ou o porquê de a LT ter sido desenergizada.

Pelas análises já publicadas pelo ONS, uma das proteções atuou indevidamente e desenergizou a LT. Mas por que a proteção falhou? Os dispositivos de proteção, físico ou não, são acionados quando há falhas em equipamentos. Ex.: se um transformador de potência sofre um curto-circuito, atua uma proteção ou conjunto delas, o que requer coordenação perfeita.

A proteção também pode ser um software, que é acionado com natureza mais sistêmica. Se uma cidade tem carga de 250 MVA, atendidos por dois transformadores de 150 MVA, se um deles fica indisponível um sistema especial de proteção (SEP) desliga parte do consumo para que o outro equipamento não falhe por sobrecarga e cause um colapso.

Para que tudo isso funcione, não pode ter desvios na configuração da proteção, que precisa de ajustes e verificações periódicas. O design dos parâmetros da proteção e a especificação do SEP dependem da dinâmica de evolução do sistema elétrico de potência, monitorada pelo ONS.

Todo tipo de ocorrência deixa uma trilha, espécie de caixa-preta, da sequência de eventos. Ela identifica qual proteção atuou, no caso, provavelmente por deficiência de manutenção ou do design da configuração e coordenação da proteção ou tudo isso junto. Pode também ter sido um erro humano, que acionou equivocadamente algum dispositivo, quem sabe por falta de treinamento.

Um documento técnico do ONS, publicado no dia 18, destacou que “um evento dessa natureza, de forma isolada, não seria suficiente para ocasionar a interrupção (…)”. Tenho muita dúvida dessa informação tão reiterada nos últimos dias.

Às 8h31, início da ocorrência, a geração por meio da fonte solar passava de 2 GW para quase 20 GW, numa rampa espetacular. E 95% disso entre o norte de Minas e o Nordeste. No mesmo intervalo, mais 4 GW de geração distribuída (GD) com solar fotovoltaica eram agregados à rede. Simultaneamente, as eólicas, que produziram mais de 22 GW na madrugada, reduziam a geração, por falta de vento, para 14 GW.

São três movimentos equivalentes a mais que duas usinas do porte de Itaipu a entrar na rede num período muito curto. Qualquer outro evento brusco na região, como a saída de uma LT que transportava um montante não desprezível de MW, pode sim desencadear eventos indesejáveis, como no dia 15.

A LT Quixadá-Fortaleza, desenergizada de maneira imprópria, transportava, no máximo, 2 GW. Mas sua abertura resultou num blecaute de 19 GW e alcançou todas as regiões do Brasil. Por quê? O ONS, no mesmo documento técnico, diz que a saída da LT provocou oscilações, que exigiram o acionamento da proteção de sincronismo, que, junto com o esquema regional de alívio de cargas (ERAC), realizaram a separação do sistema em três áreas (“ilhas”) e fizeram cortes controlados de carga. Correto.

Porém, um corte de menos de 2 GW resultou numa “ilha” como a Grã-Betanha, e não como Fernando de Noronha. Compreendo, mas não é razoável a explicação. Para resolver um problema de 2 GW foi criado outro dez vezes maior. O problema não foi isolado, mas ampliado. Não é inteligente.

Em todo mundo é tudo muito recente. É trocar pneu sem parar o carro. No Valor (Flexibilidade e coopetição elétrica, em 22/09/2022, e Mudou o paradigma no setor elétrico, em 28/02/2023), alertei para a nova interação entre a oferta por renováveis e a forma de operar o sistema. E concluía: com o veloz e promissor crescimento das renováveis na matriz elétrica, o recurso escasso agora é confiabilidade, e não mais a energia.

E foi o que fez o ONS a partir do dia 16. Mais hidrelétricas passaram a operar em vazio – sem injetar energia na rede -, numa estratégia que eleva a inércia do sistema – maior capacidade adaptativa. Deu flexibilidade ao sistema, talvez tardiamente. Mas mudou a lógica de operação, o que é bom.

Os custos crescerão. Os reservatórios serão mais utilizados e térmicas flexíveis necessárias. É o padrão numa oferta que migra, rapidamente, para o domínio de renováveis variáveis. Certamente o ONS, o Comitê de Monitoramento e o regulador não perceberam que era urgente um novo desenho para a gestão da operação do sistema. Mas era e ainda é urgente.

Já se pode afirmar onde iniciou a ocorrência. É conhecida a trilha do acionamento indevido da proteção. E parece claro que os organismos do setor elétrico não enxergaram a tempo que o “software” (da gestão da operação) precisava evoluir para o novo hardware (a matriz com mais e mais renováveis). A aeronave é agora um A350, a mais top do mundo. A inteligência não pode ser a do T6, avião dos anos 1930, um teco-teco.

Também é certo que a privatização não foi a raiz do apagão. Tal hipótese desvia o foco, atrapalha a investigação e o processo de aprendizagem. É um lema a la Chacrinha, que veio para confundir, e não para explicar. E os maiores apagões aconteceram em instalações de estatais: na CESP, em 1999; Furnas, dois numa mesma semana de 2005, em 2009 e 2012; e na CHESF em 2011. E segue por aí.

E logo apareceram outros lemas semelhantes. Uns defendem térmicas na base. Há quem diga que é culpa das renováveis. Até a nuclear tentou justificar-se no Novo PAC. E teve parlamentar que pôs a culpa no regulador, o saco de pancadas. Mas não passa de chacrinhas – conversa fiada. Mas todo cuidado é pouco.


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